Estamos prestes a iniciar o tempo litúrgico da Quaresma. Os dias que a antecedem são oportunos para se perguntar: “como posso fazer desta Quaresma uma Quaresma diferente? ” Sem dúvidas, a grande tentação que surge nestes momentos é viver os tempos litúrgicos especiais como se não tivessem nada de especial. Rezando a respeito lembrei de um episódio simples, mas que chamou a minha atenção sobremaneira… Em certo Centro de Evangelização, enquanto a Missa estava sendo celebrada, uma criança passou diante do presbitério e fez uma respeitosa reverência ao altar. O seu piedoso gesto, que provavelmente aprendera obedientemente dos seus pais, gerou uma reação de ternura nos presentes. Logo após a Missa, os objetos litúrgicos (dentre eles, o altar) foram retirados para dar início a outra atividade. Em determinado momento, a mesma criança que fizera a vênia ao altar durante a Missa, passou novamente diante do palco e, mesmo não tendo altar nenhum, fez a vênia. O gesto despertou uma discreta risada no meio dos presentes. O que nos diz esse episódio? Aquilo que parecia ser um gesto de piedade não passou de ser o cumprimento de uma regra fortalecido pela eficácia do costume. Provavelmente lhe disseram os pais: “Quando você passar por aqui, precisa fazer uma reverência”, e a criança, obediente, aprendeu aquilo que os pais orientaram. Contudo, sem pretender ignorar a condição da criança, podemos nos perguntar: será que os pais da criança deram para ela pelo menos uma noção básica, sobre o milagre que estava reverenciando, ou simplesmente se preocuparam com ensinar a criança o gesto externo? Não queremos avaliar a atitude dos pais, pois este texto não é sobre a formação espiritual dos filhos, antes, queremos nos perguntar: será que isso acontece conosco? Será que vivemos práticas espirituais ou atos de piedade pela força do costume ou pelo mero cumprimento de uma regra? Por exemplo, quando fazemos a genuflexão ao entrarmos numa igreja ou capela, lembramos que fazemos isso porque entramos no mesmo espaço que um Rei e queremos render-lhe homenagem? Quando erguemos os braços ou batemos palmas numa oração comunitária, simplesmente respondemos à sonoridade e ritmo da música ou estamos orando com o nosso corpo? Quando, na fila da comunhão, fazemos uma reverência ou até nos ajoelhamos, o fazemos lembrando que vamos receber o próprio Deus dentro de nós, ou o fazemos porque todo mundo faz? Quando pedimos a bênção dos alimentos, o fazemos para agradecer pela providência de Deus que cuida de nós, ou é meramente uma convenção social que indica o início da refeição? Gestos exteriores Todos os momentos da vida espiritual (que é intrinsecamente interior) são marcados por um gesto corporal (intrinsecamente exterior). Podemos dizer que os gestos exteriores têm a sua origem e razão de ser na espiritualidade. Esse princípio e vínculo faz com que cada um destes gestos seja bom por natureza. Efetivamente, os gestos exteriores fazem parte da composição da prática religiosa. Basta ver a vida de Jesus Cristo, cujas palavras e sinais iam sempre acompanhados por um gesto corporal. Este exemplo foi adotado pela Igreja desde os primeiros séculos até os nossos dias. Na celebração dos Sacramentos, por exemplo, superabundam os gestos corporais que, por sua vez, estão cheios de significado espiritual. Se os gestos são naturalmente bons, o que há de negativo no exemplo que demos no início? O gesto sempre deve ir acompanhado do seu significado espiritual, caso contrário, é esvaziado. Todavia, podemos afirmar que o gesto foi feito para permanecer cheio de significado. Veja bem, a fé cristã – diferentemente do judaísmo e do islamismo – tem como fundamento o “Verbo que se faz carne” (cf. Jo 1,14). Ora, o termo “Verbo”, nos vem do latim “verbum” que, por sua vez, foi a palavra que São Jerônimo escolhera para traduzir o termo grego “logos” e plasmou a edição Vulgata. Porém, “logos” significa muito mais do que simples palavra pronunciada pelos lábios de uma pessoa. Ele indica a “razão do ser”, isto é, o pensamento ou conhecimento (“scientia”) de alguém. Belo é o contraste que o termo grego encontra com o termo hebraico correspondente: “dabar” que indica ao mesmo tempo “palavra” e “ação”. Jesus Cristo, o logos de Deus que se encarna, é muito mais do que a simples palavra que brota dos lábios de Deus, mas é ao mesmo tempo, pensamento, palavra e ação. Foi por meio deste logos, que tudo foi feito (cf. Jo 1,3), pois, canta o salmista: “foi a palavra do Senhor que fez os céus” (Sal 33,6). Efetivamente, o Senhor cria enchendo com a sua presença, e “a palavra do Senhor corre veloz” (Sal 147,15), é assim que “seu som ressoa e se espalha em toda terra”(Sal 18). Desta ótica, podemos dizer que Jesus é a Palavra (logos) que preenche. Se o gesto encontra seu princípio no seu significado espiritual, o esvaziamento do gesto torna-se uma espécie de anulação da “razão de ser” do gesto, ou do logos do gesto. Contudo, o verdadeiro logos de toda vivência espiritual cristã, é o Cristo, o logos de Deus. Consequentemente, a negação do logos da espiritualidade é uma negação do próprio Cristo. Em palavras mais simples, se Jesus é a Palavra que preenche, o esvaziamento do gesto pode ser compreendido como uma negação do mesmo. De forma ainda mais grave, podemos dizer que um gesto vazio significa uma não-encarnação do mistério, como uma verdadeira negação ou rejeição do “logos que se fez carne”. Posturas interiores Qual seria um bom exemplo de um esvaziamento do gesto? Os fariseus. Os fariseus eram uma seita judaica nos tempos de Jesus, assim como os saduceus, essênios e zelotas, porém, que mereceram a repreensão de Jesus de forma particular pela sua arrogância e falta de conversão interior. Jesus chamava-os constantemente “hipócritas”, ainda exorta-os citando as Sagradas Escrituras quando diz: “Bem profetizou Isaías a respeito de vós: este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; em vão me prestam culto” (Mc 7,6-7). Com a mesma firmeza advertia seus discípulos: “Cuidado! Guardai-vos do fermento dos fariseus” (Mc 8,15). Os fariseus costumavam cumprir as leis ao pé